quarta-feira, 28 de março de 2012

Sonzêra - 2

Um dos mais bacanas e esquecidos vanguardistas da música brasileira é o paulistano Walter Franco, que fez relativo sucesso nos anos 70, sobreviveu no início dos 80 e depois sucumbiu ao ostracismo. Seu último sucesso, Canalha, integrava o ótimo álbum Vela Aberta, de 1979. Esta música (um rock e tanto!) foi defendida aos berros no Festival da Tupy e vaiada pelo público, que não entendeu imediatamente o teor crítico da obra e o protesto presente na própria interpretação. Aumentem o volume das caixinhas de som, seus canalhas:

segunda-feira, 19 de março de 2012

O sol brasileiro


Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, é o único filme brasileiro (em coprodução com Itália e França) a ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1960. O roteiro, baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, transpõe a história de um mito grego para a realidade de uma favela carioca durante o Carnaval.
Orfeu é representado pelo ator Breno Mello, que seria considerado o primeiro galã negro do cinema brasileiro, e Eurídice é vivida pela linda atriz norte-americana Marpessa Dawn. A trilha sonora é um dos pontos fortes da película: quase todas as canções são assinadas por Tom Jobim e Luís Bonfá.

Apesar de retratar a favela com pueril inocência e romantismo, Orfeu Negro é um filme que encanta pela fotografia (não poderia ser diferente um filme emoldurado pelas paisagens exuberantes do Rio de Janeiro) e pela delicadeza extrema de algumas cenas – como a cena em que as crianças, levando à sério uma brincadeira feita por Orfeu no início da trama, tocam violão para “fazer o sol nascer”.

Com a simplicidade da gente brasileira, esta é uma das cenas mais bonitas da história do nosso cinema.



domingo, 18 de março de 2012

Sonzêra - 1

Deixa eu Dizer (Ivan Lins / Ronaldo Monteiro) foi um dos maiores sucessos da cantora Claudia, carioca, revelada no Festival Fluminense da Canção, em 1969, com Razão de Paz para Não Cantar (Eduardo Lage / Alésio de Barros). Em 1983 atuou no musical Evita, que ficou dois anos em turnê mundial. Tem mais de 20 discos gravados ao longo da carreira.

quinta-feira, 15 de março de 2012

São Paulo, a cidade proibida


[Para ler ao som de Negro Drama, dos Racionais, com o grupo Vesper Vocal: Ouça]

A onda proibitiva em São Paulo começa com José Serra, continua com Geraldo Alckmin e ganha sua personificação mais bizarra com Kassab, que fez do não a marca de seu governo. Algumas poucas proibições poderiam ser justificáveis se não escondessem intenções higienistas nas entrelinhas. Outras são completamente estapafúrdias, como veremos a seguir.
Em São Paulo foi criada a Lei Antifumo, que se alastrou pelo Brasil como um câncer. O argumento de que a fumaça do cigarro alheio em ambientes fechados causaria malefícios à saúde do “fumante passivo” esbarra no direito individual quando regulamenta valores por meio da lei. Por que alguém não tem o direito, por exemplo, de abrir um bar exclusivo para fumantes ou de manter uma área reservada para eles? Em São Paulo é proibido fumar até na calçada, se houver um toldo ou cobertura sobre vossa cabeça.

Anúncios de outdoors foram vetados. A Lei Cidade Limpa é positiva quando objetiva reduzir a poluição visual na capital. O problema é o modelo de implantação desta lei, pois hoje qualquer cidadão está proibido de estender à frente de sua casa uma placa ou faixa com qualquer mensagem, inclusive (e a meu ver principalmente) de protesto contra o descaso do governo. Se alguém quiser protestar contra buracos na rua do bairro terá que pedir autorização da prefeitura. O que será negado, por óbvio, constituindo assim um veto indireto à liberdade de expressão.

Chegou a ser proibida a circulação de motos com mais de uma pessoa. O argumento para vetar o “carona” na garupa é de que este poderia ser um assaltante. Como os assaltos praticados por duplas sobre motos são comuns, decidiu-se proibir duas pessoas de dividirem a mesma moto ao mesmo tempo. A iniciativa lembra aquela piada do marido que pegou a mulher com outro no sofá e, para se livrar do problema, vendeu o sofá. Felizmente a lei foi derrubada: feria o direito de ir e vir assegurado pela Constituição Federal.

Outra envolvendo motos: veículos de duas rodas foram proibidos de circular na Avenida 23 de Maio, sem justificativa plausível. A decisão foi revogada pouco tempo depois porque não tinha consistência.

Também foi proibida a circulação de caminhões nas marginais. Agora, esses veículos precisam usar o Rodoanel da CCR (empresa de amigos de José Serra) e pagar o pedágio, se quiserem trabalhar. Recentemente, caminhões proibidos de circular pela Marginal Pinheiros pararam temporariamente de fornecer combustível para os postos de gasolina de São Paulo, como forma de protesto.

A paranóia com os assaltos fez com que o uso de celular fosse vetado dentro de agências bancárias.

A paranóia com a saúde proibiu médicos de usarem jaleco fora do hospital.

Mas a melhor foi a proibição do ovo mole nos botecos da cidade. Para evitar que o cliente contraia uma intoxicação causada pela salmonela.

Cúmulo da falta do que fazer, o molho à vinagrete foi proibido nas pastelarias. Para não contaminar o pastel com bactérias malvadas.

A paranóia com o silêncio levou à proibição do tradicional pregão nas feiras livres. Os comerciantes não podem mais divulgar suas ofertas em voz alta, como é costume no Brasil desde 1500.

Da mesma forma, cobradores de lotação não podem mais informar o destino do veículo gritando para fora da janela, atitude que facilitava a vida de deficientes visuais e de analfabetos.  

Por incrível que pareça, não são mais permitidas bancas de jornal no centro de São Paulo, pois, segundo a prefeitura, as banquinhas poderiam ser usadas como "fortalezas e esconderijos de assaltantes em fuga".

Proibiu-se o uso de câmeras fotográficas nos terminais de ônibus.

As câmeras estão proibidas também no metrô.

Também proibiram a venda de quentão e vinho quente nas festas juninas das escolas.

Para salvaguardar a saúde de nossos jovens, refrigerantes e frituras foram vetados nas cantinas dos colégios.

Pobres estudantes: matar aula está proibido em São Paulo. Com ordem da prefeitura, PM sai à caça de alunos gazeteiros, que acabam dentro do camburão, como marginais.

Não se pode mais beber cerveja nos estádios de futebol e nem levar bandeiras para torcer pelo seu time.

Recentemente, a paranóia com o meio ambiente proibiu o uso de sacolas plásticas nos supermercados. A lei foi derrubada porque contrariava os direitos do consumidor.

Mais: está proibida a doação de material reciclável para catadores. Isso mesmo: doação!

Os artistas de rua estão proibidos de se manifestar na Avenida Paulista e em outras regiões nobres da cidade. Os que ousam mostrar sua arte em público, dos malabaristas às "estátuas vivas", são violentamente reprimidos pela PM.

A última da onda repressiva é a lei, já aprovada pela assembléia legislativa, que proíbe o consumo de bebida alcoólica em áreas públicas, como bares, calçadas, praças e praias. Se for sancionada pelo governador – e tudo indica que será – ninguém poderá beber sua cervejinha despreocupadamente na rua.

Isso sem falar nas vergonhosas rampas antimendigo instaladas sob os viadutos e pontos estratégicos para impedir que moradores de rua durmam naqueles locais.

Também foi proibida, pelo então governador José Serra, a venda de bananas por dúzia, como sempre foi feito nas feiras. Agora, em todo o Estado, a banana só pode ser vendida por peso. Quem insistir, poderá ter seu comércio multado.

A prefeitura de São Paulo se meteu ainda em uma cruzada contra as bancas de jornais. Isso mesmo: para forçar o fechamento das bancas na Praça da Sé e outros pontos da cidade, Gilberto Kassab está proibindo os donos de vender produtos como guarda-chuvas, chocolates e publicações "atentatórias à moral". Não acreditam? Leiam aqui.  

Kassab também não gosta que pobres socializem em espaços culturais criados por eles. Por isso tem proibido os saraus nas periferias. Um dos mais antigos e tradicionais, o Sarau do Binho, na região do Campo Limpo, foi fechado recentemente, à exemplo de espaços culturais semelhantes no Bixiga e na Brasilândia. Todos tinham uma característica em comum: eram espaços de resistência do movimento hip-hop. 

O trabalhador informal também é tratado como criminoso em São Paulo. Kassab cancelou as permissões de trabalho de todos os camelôs da cidade

Proibição das mais cruéis é a que pretende proibir a distribuição de comida para moradores de rua. As entidades assistenciais que entregam todas as noites o "sopão" para pessoas que não têm nada na vida, são os alvos preferenciais. Kassab espera, com isso, forçar os mendigos a saírem das ruas e se internarem nos  albergues da prefeitura, que são péssimos e oferecem comida de baixa qualidade. 

Kassab também não permite a distribuição gratuita de livros. Pelo menos foi o que aconteceu quando uma ONG, que se dedica a promover o gosto pela leitura, tentou doar livros usados para os transeuntes no Centro de São Paulo.

Andar de skate na praça Roosevelt? Nem pensar

O jornalista Rodrigo Martins, da Carta Capital, foi muito feliz quando definiu, em seu artigo Cervejaço contra a caretice: "São Paulo é uma cidade de loucos exatamente pelo fato de negar a seus habitantes o direito à cidade".

quinta-feira, 8 de março de 2012

Todas as mulheres


[ Para Leila Diniz, síntese da mulher brasileira ]

As mulheres sempre me interessaram soberanamente. Esta frase não é minha, mas do saudoso Darcy Ribeiro, educador, antropólogo, poeta e mulherólogo. Tomo a frase como minha porque são elas, as moças, a razão do meu viver, o sal da minha inspiração, o motor que move a engrenagem das minhas vontades.

A companhia feminina me leva a escrever, a trabalhar, a amar. É música para os meus ouvidos. Sem a presença das mulheres não haveria o cristal invisível entre o sonho e a realidade dos homens – este desejo incontrolável de conquistar territórios, este sopro belicoso a conduzir nossa alma pelos campos de batalha.
 
Escrevo sobre as moças enquanto escuto o novo disco do Grupo Anima. Donzela Guerreira, inspirado no estudo homônimo de Walnice Nogueira Galvão, beira o sublime ao musicar o mito da mulher que se veste de homem e vai à guerra. Este arquétipo feminino está presente em todas as culturas e épocas. Está na literatura, na mitologia e na história. No Brasil, por exemplo, está encarnado em Maria Quitéria, heroína da Independência, e em Diadorim, personagem de Grande Sertão: Veredas, clássico de Guimarães Rosa.


A moça insubmissa e revolucionária, que subverte o papel historicamente destinado às mulheres, parece ser não apenas uma aspiração feminina, mas uma fantasia dos homens. Não deve ser coincidência o fato de a deusa Palas Atena ter nascido da cabeça de Zeus, depois que este, sofrendo com terríveis dores de cabeça, pediu que o filho Hades lhe abrisse o crânio com um porrete. Para o espanto dos deuses do Olimpo, dentro da cabeça de Zeus havia uma jovem mulher empunhando escudo e espada.

Também na mitologia iorubá temos a donzela guerreira na figura de Iansã, orixá dos ventos e tempestades, cuja beleza deflagrou uma disputa mortal entre Ogum, o poderoso deus da guerra, e Xangô, o impiedoso rei de Oyó. Destinada a lutar por liberdade, Iansã amou a ambos e não foi de nenhum. Não por acaso, sua espada tem a forma de um raio, uma chispa de fogo que encanta e amedronta.

Sendo uma das mais secretas e inconfessáveis fantasias masculinas, a mulher rebelde suscita medo e ódio. Ainda que sua causa seja justa, tem de ser combatida pelo machismo. Mais do que combatida: apagada da história. Cabe citar, neste caso, a obsessão que os militares brasileiros tinham por decapitar as guerrilheiras presas durante a ditadura. A prática de separar a cabeça do corpo revela, simbolicamente, o desejo inconsciente de eliminar não somente a vida física, mas as ideias.

Está em voga, sobretudo após a eleição da ex-guerrilheira Dilma Rousseff para a presidência do Brasil, um tipo de pensamento retrógrado que tenta desqualificar aqueles que lutaram contra a Ditadura. Comparar opositores do regime a terroristas é uma tática suja utilizada por quem perdeu o bonde da história. A resistência à tirania é um direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. O único responsável pelo surgimento da luta armada foi o governo ilegítimo instalado em Brasília na base da força. A guerrilha nasceu como resposta à violência do Estado e não o contrário. Foi assim na Argentina, em Angola, na Argélia, em todas as partes do mundo onde houve ditaduras.

Eram terroristas aquelas moças que, como Dilma, enfrentaram o pau-de-arara e o choque elétrico? Ou eram terroristas os que censuravam, perseguiam, torturavam e matavam em nome da Família, de Deus e da Propriedade? Era terrorista a estudante Helenira Resende, que sonhava em ser crítica de arte e morreu a golpes de baioneta no Araguaia?

Principalmente em março, quando lembramos o massacre das operárias de Chicago, queimadas vivas quando reclamavam melhores condições de trabalho numa fábrica de tecidos, temos o dever de refletir sobre a importância da mulher na história das lutas democráticas. No Brasil, apesar de quase não figurarem nos livros de história, elas assumiram papel determinante nas conquistas e foram sempre a vanguarda. Da inesquecível Flor da Noite, a prostituta que colaborou na insurreição dos marinheiros da Revolta da Chibata, passando por Leila Diniz, que libertou as moças dos grilhões do moralismo hipócrita, as mulheres costuraram o mapa do Brasil, bairro por bairro, rua por rua, casa por casa, forjando o espírito sensual e criativo desta nação grávida de futuro.

[ Fotos de Leila Diniz na praia de Ipanema e com Paulo José, no filme Todas as Mulheres do Mundo]

quarta-feira, 7 de março de 2012

Heleno de Freitas

“Eu era mais feliz quando tinha raiva”, diz Heleno de Freitas pela voz de Rodrigo Santoro. Verdade. O Heleno de Freitas da vida real era muito mais feliz antes de a sífilis e o éter transfomarem raiva em loucura. Sua história, das mais dramáticas vividas por um jogador de futebol no Brasil, é a de um ídolo — bonito, elegante, inteligente, rico, famoso, excepcionalmente bom de bola — que em pouco tempo perdeu tudo isso para viver seus últimos anos entre as paredes de um sanatório em Barbacena. Nisso, e pela consciência que tinha de sua derrocada, a história de Heleno é mais triste que a de Garrincha.

Sua raiva era a de um craque diferente, pela vontade de ganhar, pelo desespero com que buscava a perfeição, pela intolerância com os pernas de pau, pela aversão aos adversários desleais e pela reação explosiva aos árbitros incompetentes. O futebol era a sua vida. E quando o domínio da bola começou a perder-se nos pés do homem de nervos estropiados, foram-se a raiva e a felicidade.

Na época, chamavam-no de “temperamental”, poucos percebendo, por trás dos destemperos com os adversários e com os próprios companheiros, vestígios da paralisia progressiva que começava a miná-lo. “Eu sou a própria vontade de vencer”, diz Heleno novamente pela voz do ator que o representa soberbamente no filme de José Henrique Fonseca. Um filme que enfatiza a derrocada do ídolo em relação à glória de Heleno como centroavante clássico, de passes e chutes precisos, excelente cabeceador, titular do Botafogo, da seleção carioca e do escrete brasileiro, no tempo em que se escrevia scratch.

Em mais de uma cena, fica-se sabendo do sonho (na verdade, obsessão) de Heleno em relação à Copa do Mundo que se realizaria no Brasil em 1950. Outra vez, verdade. Heleno tinha sido um dos grandes nomes do Campeonato Sul-Americano de 1945, no qual, com Tesourinha e Zizinho de um lado, Jair e Ademir do outro, formara um ataque “cheio de luzes”, como o definiu a revista argentina El Grafico. Tinha cumprido, também, excelentes temporadas de 1946 a 1949. Neste último ano, com a camisa do Vasco, pelo qual sagrou-se campeão invicto (triste ironia para um botafoguense que jamais passara de vice em seu clube de coração). Enfim, com Leônidas da Silva perto de aposentar-se e sem outro centroavante de seu nível à vista, Heleno tinha todo o direito de sonhar.

A quem assiste ao filme — sem ter tido a oportunidade de viver aquela época — talvez ocorra uma pergunta: não fosse a briga com Flávio Costa, técnico do Vasco e da seleção brasileira (briga de revólver que o filme revive), será que Heleno teria realizado seu sonho? E, com ele no ataque, o Brasil teria melhor sorte?

Resposta negativa para as duas perguntas. A briga com Flávio já era atestado de que a raiva de Heleno dera lugar à loucura. E o admirável craque que ele tinha sido já saíra de campo para não mais voltar. No final, no sanatório, sequer lhe restavam as lembranças de quando fora feliz.
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[ Publicado originalmente em O Globo de 06/03/2012]

segunda-feira, 5 de março de 2012

Mãe de santo à francesa


[Gisele Cossard: deixou a França pelo candomblé]

Quando a francesa Gisele Cossard Binon pisou pela primeira vez num terreiro de candomblé, pairava um clima de festa no local. Era o dia 5 de dezembro de 1959 e, na noite anterior, uma festa para Iansã havia sido realizada. A roça recendia a flores e ela sentiu, naquele momento, que nada era aleatório, que tudo fazia sentido: cada cor, cada folha, cada detalhe. Sua vida jamais seria a mesma depois de ouvir os atabaques tocando para Iemanjá, a rainha do mar.

Recém-chegada ao Rio de Janeiro, a moça de pele branca e olhos azuis era católica e não tinha qualquer relação com a cultura africana -- berço do candomblé. "Aparentemente, nada me ligava tão fortemente à África. Nasci no Marrocos, país que deixei antes de completar dois anos de idade, muito pequena para ter conservado qualquer lembrança. Mas meus pais, que eram franceses, guardavam dessa terra uma imagem encantadora, que embalou toda a minha infância", diz ela na apresentação de seu livro Awó - O Mistério dos Orixás (Editora Pallas).

Com o marido, o diplomata Jean Binon, Gisele morou em alguns países africanos -- como Camarões e Chade -- e no final da década de 1950 estabeleceu-se no Brasil, quando Binon veio assumir um posto na embaixada da França, no Rio de Janeiro. Foi aqui que ela sentiu "a presença africana nas cores do povo, no gingar das mulheres andando pelas ruas, no cheiro do dendê nas esquinas e na exuberância da música e das danças".

O convite para conhecer o terreiro de candomblé partiu de uma empregada, que era filha de santo. Movida pela curiosidade e pelo interesse antropológico, Gisele dirigiu-se até a casa de Joãozinho da Gomeia, famoso babalorixá (pai de santo), um Duque de Caxias, região metropolitana do Rio. A inocente visita marcaria definitivamente a sua trajetória. "Aqui encontrei a chave para a África", disse.

Gisele Cossard Binon nasceu em 1923 em Tanger, Marrocos, onde seu pai atuava como militar. Sua família era católica, de classe média, republicana e culta. O pai era professor primário e a mãe pianista do Conservatório de Música de Paris. Enviado para aquela ponta extrema da África, na época um protetorado francês, na Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), seu pai acabou fascinado pelo país e permaneceu por lá até 1925 -- quando retornou à França com a mulher e a filha. Gisele não guarda lembranças daquele período, mas, segundo o pesquisador Michel Dion, autor da biografia Omindarewá -- Uma francesa no Candomblé (Ed. Pallas), a suntuosa coleção de objetos de arte que seus pais trouxeram daquele país africano, bem como suas histórias fantásticas, constituíram para ela uma "interminável fonte de deslumbramento".

A eclosão da Segunda Guerra, em 1939, foi determinante para que ela ampliasse os seus limites. Com o pai preso e deportado para a Alemanha, a família teve que abandonar a casa para fugir do exército nazista de Hitler. Gisele entrou para a resistência francesa, onde atuou como espiã: com sua bicicleta, atravessava as linhas do front ao sul de Paris e fornecia aos militares franceses informações sobre as posições alemãs. Ela se lembra de ter passado muita fome nesse período. No fim da guerra, em 1945, pesava apenas 42 quilos. Foi nesse nano que seu pai voltou da prisão, a família restabeleceu-se e ela casou-se com Jean Binon.

Em 1949, Gisele partiu com o marido para uma estadia de oito anos pela África. Percorreu o interior da República dos Camarões e descobriu uma iguaria impensável: peixe defumado no azeite de dendê. Na travessia de um rio, viu africanos atirando moedas na água em sinal de oferenda e achou tudo muito exótico. "Não entendia aquelas pessoas que faziam tudo diferente de mim. O que se passa na cabeça de um africano? Pode-se dizer que essa questão é o ponto de partida de toda a minha epopéia", relata em seu livro.

A consciência de que existia um outro mundo, outra forma de pensamento, que são paralelos ao mundo ocidental, causou-lhe uma revolução interna. Descobriu a paixão pela caça -- mas Gisele sempre preferiu atuar como rastreadora e seguir a pegada dos animais. Atravessou Oubangui, Congo belga (hoje Zaire), Uganda, Kenia e Tanganyka e, em 1956, retornou à França.


[Omindarewá: primeira estrangeira a se tornar mãe de santo]

No Brasil
Quando Jean Binon foi nomeado para trabalhar na Embaixada da França, no Rio de Janeiro, Gisele comemorou. Recém-chegada, não demorou a fazer amigos e aprender rapidamente o português. Nos livros de Jorge Amado, descobriu a magia dos orixás. Quanto mais se inseria na vida brasileira, mais sentia nela a presença africana. "As cestas trazidas da feira em cima da cabeça; a música que está sempre presente em todos os lugares, nas ruas, nas lojas, na praia, ritmada por tambores (...). E também porque todo mundo está sempre dançando", escreveu Dion em sua obra.


Ao contrário de Jean Binon, que só andava com franceses e odiava o Brasil de forma inexplicável, Gisele Cossard parecia cada vez mais integrada à nova realidade. Seus filhos adaptaram-se rapidamente ao País, falavam português perfeitamente e jogavam futebol na rua. Não tardou para que seu casamento entrasse em crise.

E foi naquela noite de dezembro, no terreiro de Joãozinho da Goméia, que ocorreu a grande virada em sua vida. Quando o babalorixá soube que Gisele pertencia à Embaixada da França, acolheu-a de modo especial. Ela lembra que ficou "fascinada" pela força de seu olhar. Os ogãs começaram a tocar os atabaques para Iemanjá e, de repente, enquanto admirava a evolução da dança, a francesa começou a se sentir estranha. "Pouco a pouco senti como um vazio no estômago e fui parar no chão, praticamente sem consciência." A moça estrangeira havia "bolado no santo" (quando o orixá "toma" a cabeça da pessoa, mostrando a todos os presentes que aquela pessoa foi escolhida por ele e deve ser iniciada).


Ao acordar do transe, deitada em uma esteira, ouviu alguém lhe informar que fora escolhida pelo orixá. A princípio, resistiu. "Tenho medo e não quero abandonar meus compromissos diplomáticos", disse ao pai de santo. Meses depois, sofrendo com fortes dores de cabeça, rendeu-se ao chamado de Iemanjá, procurou Joãozinho da Gomeia e iniciou-se no candomblé. Após o período de 21 dias de recolhimento, nasceu para a nova vida. Seu nome não era mais Gisele Cossard Binon. Passou a ser chamada de Omindarewá, que significa "água límpida".

A história de Cossard Binon explica, de certa forma, o sincretismo de nossa cultura, "de repente representada não mais por uma divindade e, sim, por um ser humano", como escreveu certa vez Jorge Amado, referindo-se ao conterrâneo de Gisele, Pierre Fatumbi Verger (nome dado ao fotógrafo francês em 1953, na Áfricam e que significa "nascido de novo graças ao Ifá"). Assim como ele recebeu o título de Ojuobá ("os olhos de Xangô") das mãos de Mãe Senhora (autoridade máxima do terreiro Ilê Opô Afonjá), também a mulher do diplomata foi escolhida pelos orixás para exercer um cargo de grande responsabilidade dentro do candomblé: o de yalorixá (mãe de santo). Gisele foi a primeira mulher estrangeira a assumir esse posto no Brasil. Hoje, aos 85 amos, é uma das personalidades mais influentes da religião afro-brasileira. 


[A hipnótica dança de Ogum]

No terreiro
O início, porém, não foi nada fácil. "Joãozinho da Gomeia teve muita coragem quando decidiu me iniciar -- preparar a minha cabeça para receber o orixá. Estava abrindo as portas do candomblé para uma mulher a quem chamava de embaixatriz. "Eu não era embaixatriz, só queria aprender. Foi difícil conquistar a confiança do grupo. Mas, com paciência, fui fazendo amizades", relembra Omindarewá.
Em 1963, já iniciada, separou-se do marido e partiu para a França para defender uma tese sobre candomblé na Sorbonne. Lá conheceu Pierre Verger, de quem se tornou amiga. Tentou levar uma vida "normal", mas, não suportando a saudade, voltou ao Brasil em 1972 e foi trabalhar como conselheira pedagógica do Serviço Cultural Francês.

Sem o apoio de seu babalorixá -- Joãozinho da Gomeia falecera um ano antes de seu regresso -- Omindarewá manteve-se afastada dos terreiros. Porém, mais uma vez, o chamado do orixá foi mais forte. Em 8 de dezembro de 1973, Gisele sofreu um grave acidente de carro. Desenganada pelos médicos, foi levada por Pierre Verger à casa de Balbino Daniel de Paula -- Balbino de Xangô, iniciado no Opô Afonjá, terreiro de Joãozinho da Gomeia -- que se propõs a ajudá-la. "Ele (Balbino) trouxe alguns de seus iniciados e ficou comigo em Santa Cruz da Serra, no Rio de Janeiro, na casa que eu acabara de comprar. Onze dias depois do acidente, era o meu aniversário de iniciação e ele fez questão de preparar as oferendas para Iemanjá. Mesmo estando eu gravemente acidentada, sem poder me mexer, sem poder andar, meu orixá veio, dançou em meu corpo e Balbino encantou-se com ele. Nossa ligação se estreitou e ele acabou sendo meu segundo babalorixá", lembra.

Durante alguns meses, Balbino de Xangô ajudou Gisele a desenvolver o seu terreiro Ilê Axé Atara Magba, em Santa Cruz da Serra. O terreiro de Omindarewá passou a funcionar a todo vapor, apesar de muitos desconfiarem de sua legitimidade. "Fui discriminada por ser branca e estrangeira", diz. O escritor Antonio Olinto, em seu texto para a orelha do livro de Gisele, escreve a respeito da presença de estrangeiros no candomblé: "Há aspectos da religião dos orixás no Brasil que surpreendem pelo ineditismo. (...) Num congresso organizado em São Paulo pelo babalorixá Jamil Rached -- e pelo nome árabe do pai de santo já se pode ficar surpreendido -- apareceu um grupo de japoneses, com roupas de santo. Logo depois surgiu uma casa muito animada: a de Giuseppe, italiano, que dança como ninguém".

Candomblé e a classe média
O candomblé tem raízes milenares e chegou ao Brasil pelas mãos dos escravos africanos trazidos pelos portugueses. Foi proibido e considerado crime até 1946, mas sobreviveu às perseguições e às inúmeras tentativas de extermínio. Por ser associado aos negros, permanece envolto em preconceitos. Apesar disso, a iniciação de brancos e estrangeiros no candomblé praticado no Brasil não é fenômeno recente. Apesar de sua matriz africana e negra, a religião adaptou-se ao sincretismo para sobreviver no novo continente. "O candomblé é uma religião aberta. O destino das pessoas é predeterminado pelos orixás e não pela cor da pele", diz Omindarewá. Giuseppe, o italiano que virou pai de santo, concorda: "Desde a Itália eu achava que toda religião devia ter dança. Quando cheguei ao Brasil e vi a dança dos orixás, disse logo: 'esta é a minha religião'".

O Brasil é o país com a maior comunidade católica do mundo. Mais de cem milhões de brasileiros declaram-se católicos. Muitos deles, contudo, acreditam também nos orixás, consultam os búzios, participam de ebós (trabalhos espirituais) e fazem oferendas. Isso talvez explique o fato de os terreiros estarem sempre cheios, embora os candomblecistas respondam por índices muito baixos nos censos sobre religião no País. Estudos mostram que a classe média não admite publicamente sua crença no candomblé. "Há um estigma de que declarar a fé no orixá poderia prejudicar suas carreiras", afirma Mariza Soares, professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O xirê
Atualmente, Omindarewá contabiliza mais de 400 filhos-de-santo. Um de seus primeiros iniciados é Mário Fernandes Filho, conhecido como Babatonican ou Pai Mário de Ogum. Ele é o babalorixá à frente do Ilê Axé Ifé Ogum Oraminan, terreiro localizado na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Apesar de ser pai de santo há muitos anos e de ter casa aberta, Pai Mário ainda não havia recebido o deká -- um direito transmitido que delega, oficialmente, a autoridade para que a pessoa possa exercer o cargo mais alto do candomblé. Depois de receber o deká das mãos de sua mãe de santo, ele poderá, finalmente, "raspar", ou seja, iniciar seus próprios filhos.

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Por isso, o terreiro de Pai Mário de Ogum estava lotado de fiéis e visitantes na noite em que Omindarewá entregou o deká ao homem que aprendeu com ela os segredos do candomblé. Em uma cerimônia hipnotizante, os fiéis, de roupas brancas e batas africanas, dançaram em círculo e cantaram para Ogum, depois para Oxóssi e assim por diante, até que todos os orixás tivessem sido invocados. Omindarewá aproximou-se de Pai Mário, que estava sentado em um trono de madeira, e lançou alguns búzios aos seus pés; imediatamente, Pai Mário "recebeu" Ogum. Ele deu início à sua dança frenética e os fiéis saudaram o orixá com seu grito de guerra: "Ogunhê Patakori!". Logo, Iemanjá e Iansã também deram o ar da graça. A emoção no terreiro foi geral.
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Após algum tempo Ogum se foi. Omindarewá entregou os objetos sagrados ao seu filho, oficializando o deká. Pai Mário de Ogum estava, finalmente, autorizado a dar continuidade ao trabalho de Gisele Cossard. Os fiéis então se abraçaram, partilharam a comida oferecida pelo orixá e beberam o aluá -- bebida sagrada feita de milho fermentado. A francesa e os seus seguidores reproduziram, naquele momento, uma pequena África em solo brasileiro.

[ Publicada originalmente na revista Brasileiros, edição 16, em novembro de 2008. O texto é de minha autoria e as fotos são de Adriano Rosa ].

domingo, 4 de março de 2012

O poeta Affonso Manta

Affonso Manta Alves Dias (foto) foi um dos poetas brasileiros mais originais de seu tempo, conquanto em parte desconhecido. Nascido em Salvador, a 23 de agosto de 1939, foi guia em museu de arte sacra, repórter do Diário de Notícias e, posteriormente, inspetor da Seção de Reclamações dos Correios e Telégrafos, onde se aposentou. Era, pela via paterna, primo de quarto grau do grande poeta Castro Alves, embora nunca tenha feito proselitismo em cima disso. Levou uma vida modesta, de funcionário público, e ajudou com seus proventos muitos desvalidos em Poções, cidade baiana em que residiu nos seus últimos trinta anos. Publicou vários livros de poesia, dentre eles A Cidade Mística e Outros Poemas (1980), Retrato de um Poeta (1983), No Meio da Estrada (1991) e O Estranho na Terra (1995). Sua poesia foi construída em cima da ironia e da farsa, constituindo o autor em um crítico mordaz do cotidiano medíocre, do provincianismo e de todas as formas de autoritarismo. Morreu a 3 de dezembro de 2003, em sua casa na Rua Cel. Alberto Lopes, acompanhado apenas de um irmão médico e de uma cunhada. Sua obra ainda aguarda o devido reconhecimento por parte da crítica, dos leitores e dos editores -- todos os seus livros estão esgotados, nunca foram relançados e mesmo nos sebos são artigos de luxo (há anos procuro vestígios de Affonso Manta em todo o Brasil, sem sucesso).

O Realejo de Vinho
Para Sólon Barreto

Para quem me queira ouvir:
Sou um homem aos frangalhos.
Parte por culpa de tudo.
Parte por culpa de nada.

E digo mais ao casual
Ouvinte deste relato:
Não sendo herdeiro nem rico,
Não tenho crédito na praça.

Amo as japonas escuras,
De mangas e tudo vasto.
E os colarinhos puídos
Uso desabotoados.

Ao pôr a minha gravata,
Fabrico um laço bem largo.
E acho triste andar com ela.
E, mais tristes, as gravatas.

Eu nunca faço questão
Que uma roupa seja cara.
Mas, ampla: e, sendo possível,
Com certo ar desesperado.

Eu prefiro, aos bons charutos,
Um velho e forte cigarro.
E odeio fumar cachimbo.
Pois sou muito angustiado.

No mais: um vento me agita,
Interior e largado,
E me devasta os cabelos,
Rosto, sorriso e palavra.

Opus 7
Soneto ao poeta Adelmo Oliveira

Embora eu sofra muito neste duro
E trágico planeta sublunar;
Embora eu me debata contra o muro
De uma angústia constante, regular,
Eu creio na bandeira do futuro.
Eu creio numa guerra popular.
Eu creio no horizonte largo, puro,
Do povo no poder a governar.
Pois a tristeza que meu peito invade
Não me impede de amar a liberdade.
Amo-a, ao invés, com maior devoção.
A liberdade que é meu arrebol,
"Esposa do porvir, noiva do sol"
Como disse Castro Alves, com razão.

Lá vai Affonso Manta

Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta,
Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta
Pela rua lilás.

Coroa de alumínio sobre o crânio,
Lapelas enfeitadas de gerânios
E flechas no carcaz.

Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão,
Desfila o marechal,

O rei da extravagância, o sem maldade,
O campeão da originalidade
O peregrino astral.

sábado, 3 de março de 2012

Um silêncio chamado Tenório

No último dia 4 de janeiro, um homem foi preso em Santa Catarina, acusado de estelionato depois de tentar aplicar um golpe na região Oeste do estado. Logo surgiram as suspeitas de tratar-se de um ex-integrante do temido Serviço de Informação Naval da Marinha Argentina durante a ditadura militar que ensangüentou o país vizinho nos anos 70 e 80. Não demorou para a prisão de Claudio Vallejos repercutir na Argentina, que agora pede sua extradição.

Em 1986, em entrevista à revista Senhor (nº 270), Vallejos admitiu ter participado de sessões de tortura contra oponentes do regime e do seqüestro do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Junior (foto), conhecido no meio musical como Tenorinho. Na ocasião, março de 1976, o músico se apresentava em Buenos Aires, acompanhando Vinícius de Moraes e Toquinho. Até hoje o seu paradeiro é desconhecido.  

A notícia da prisão do ex-torturador reacende a esperança de que o episódio envolvendo o artista brasileiro possa ser elucidado de uma vez por todas. Sabe-se, com certeza, que Tenorinho foi torturado barbaramente e morto com um tiro à queima-roupa. O destino de seus restos mortais, no entanto, continua sendo um mistério, bem como a identidade de seus algozes. Abaixo, resgato um pouco desta história. Para que Tenório não caia no esquecimento, como querem aqueles que o mataram.

Buenos Aires, 1976

Na noite de 18 de março de 1976, o pianista Francisco Tenório Júnior faria, sem saber, a última apresentação de sua vida. Depois de acompanhar Vinicius de Moraes e Toquinho no Teatro Grand Rex, em Buenos Aires, o músico foi para o Hotel Normandie, onde estava hospedado. Queria descansar um pouco, pois estava com uma leve dor de cabeça.

Às três horas da manhã, Tenório levantou-se e saiu. Antes, teve o cuidado de deixar um bilhete colado na porta do quarto de Vinicius: “Vou sair para comprar cigarros e um remédio. Volto logo”. Foram suas últimas palavras antes de descer ao inferno.

Sem que ninguém pudesse imaginar, o general Jorge Rafael Videla preparava em sigilo o golpe militar que, dias depois, deporia a presidenta Isabelita Perón. Por isso, a polícia secreta argentina já estava nas ruas caçando comunistas. E Tenório Júnior era o homem errado, no lugar errado.

Ao dobrar uma esquina da Avenida Corrientes, o músico foi abordado por um grupo de militares. Sua barba e seus cabelos compridos o levaram a ser confundido com um militante de esquerda. Informou que era pianista de Vinicius de Moraes, mas de nada adiantou: o poeta, autor da Garota de Ipanema, era tido como um artista “subversivo” no país e os agentes o fizeram entrar no carro.

No próximo dia 18, fará 36 anos que o músico brasileiro desapareceu em Buenos Aires. Poucos, porém, são os que se lembram do episódio, que permanece envolto em nuvens de fumaça e de um conveniente silêncio da mídia e do Estado brasileiro. Segundo o produtor cultural argentino Juan Trasmonte, que pretende fazer um filme sobre a história do pianista, Tenório Júnior desapareceu duas vezes: “A primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil”.

Para Trasmonte, surpreende o fato de a sociedade brasileira desconhecer ou demonstrar pouco interesse no caso: “Tenório não somente era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina, mas um músico que tinha viajado para acompanhar ninguém menos que Vinicius de Moraes”, diz.

Frederico Mendonça de Oliveira, o guitarrista Fredera, defende a tese de que o assassinato do músico foi resultado de uma operação muito bem articulada entre os órgãos de repressão brasileiros e argentinos. “Eles sabiam que Tenorinho era inocente, mas naquele tempo era importante arrancar nomes, mostrar que poderiam tirar leite de pedra”, afirma.

Fredera, que tocou ao lado de artistas como Gilberto Gil e Gonzaguinha, critica a omissão da classe artística no livro O Crime contra Tenório (Atenas Editorial, 1997). Segundo ele, todos preferiram fingir que nada havia acontecido. Apenas Vinicius e Ferreira Gullar — que na época estava exilado em Buenos Aires — empreenderam uma busca desesperada e inútil. Ninguém sabia de nada.

Dez anos após o desaparecimento do músico, quando as esperanças da família e dos amigos estavam quase esgotadas, um ex-integrante do serviço secreto argentino veio ao Brasil com uma série de dossiês debaixo do braço. Seu nome era Claudio Vallejos e havia atuado como torturador durante o regime. Ele estava entre os homens que abordaram Tenório Júnior naquela madrugada de 18 de março.

Segundo os documentos secretos vendidos à imprensa, Tenório foi levado para a Escuela de Mecánica de la Armada, a ESMA, que funcionaria mais tarde como uma espécie de campo de concentração para prisioneiros políticos. Suspeito de manter ligações com grupos subversivos na Argentina, o pianista passou pela “churrasqueira” (cama de molas usada para aplicar choques elétricos) e por sessões de afogamento.

Após nove dias sob tortura, Tenório Júnior era um morto-vivo. Como a repressão não poderia soltá-lo naquelas condições, decidiu matá-lo com um tiro na cabeça e enterrá-lo em uma vala comum. O assassinato foi consumado no dia 27 de março de 1976. O Brasil perdia um de seus músicos mais talentosos e o governo não teve sequer a dignidade de comunicar o fato à família.

Somente em 2006 o Estado brasileiro reconheceu ter “feito muito pouco” para localizar e devolver à família os restos mortais de Tenório Júnior. Trinta anos depois, sua mulher e filhos foram, finalmente, indenizados por danos morais e materiais. Ainda assim, o mistério sobre o paradeiro do pianista continua. Quem conviveu com Tenório tem a sensação de que ele ainda está vagando, a procura de cigarros, pela Avenida Corrientes.


[ Tenório Jr. gravou um único disco, pelo qual recebeu elogios da crítica. Era considerado um dos mais talentosos nomes do jazz brasileiro. Ouçam acima a faixa Nebulosa. ]

sexta-feira, 2 de março de 2012

Carta de Telma Regina

A Comissão da Verdade, criada pelo governo da presidenta Dilma Rousseff, busca reparar uma injustiça histórica -- ao menos no que diz respeito ao reestabelecimento dos fatos, tais como ocorreram durante a famigerada Ditadura Militar (1964 - 1985). A Lei da Anistia, evocada pelos saudosistas da linha-dura, não deve servir como desculpa para que se deixe de investigar os atentados cometidos contra os Direitos Humanos nos porões dos quartéis e das delegacias. Mesmo a guerra tem suas regras. A tortura, o assassinato de prisioneiros e a ocultação de cadáveres são crimes bárbaros, condenados inclusive pela Convenção de Genebra. Por isso, deixar que estes tristes episódios continuem enterrados na vala comum da história é também um crime. Crime contra as famílias das vítimas, que até hoje não puderam dar uma sepultura digna aos seus mortos, e crime contra a memória do povo brasileiro, que vai perdendo seu vínculo com o passado. A história de Telma Regina Cordeiro (foto) é uma dentre tantas esquecidas.

Escolhi falar de Telma porque creio ter sobre ela uma informação desconhecida aos historiadores que estudam aquele período: a cópia de uma carta, escrita por ela aos pais, explicando a sua decisão de largar tudo para se juntar a outros companheiros na chamada Guerrilha do Araguaia, movimento armado organizado pelo PC do B na selva amazônica como tentativa de se criar, naquela região, um foco de resistência ao regime militar que perseguia e assassinava seus militantes. Pode-se tecer críticas à forma como esta aventura foi planejada, mas não se pode deixar de reconhecer e respeitar o desprendimento daquela geração de jovens que se sacrificou pelo país. Os próprios militares que combateram os guerrilheiros chegaram a admitir, em entrevistas, que não concordavam com o inimigo, mas admiravam sua disciplina e disposição em lutar pelo que achavam correto.

Telma Regina Cordeiro, carioca do Rio de Janeiro, nascida em 23 de julho de 1947, era estudante de Geografia na Universidade Federal Fluminense quando decidiu se juntar aos guerrilheiros. Chegou à região da Araguaia em 1971, onde integrou-se ao Destamento B, às margens do Rio Gameleira. Segundo relatos de moradores, foi capturada e morta em janeiro de 1974, quando a maior parte da Guerrilha já se encontrava desmantelada e não oferecia resistência. Tinha 27 anos e seu corpo nunca foi encontrado.

A cópia da carta original redigida por Telma me foi confiada por uma de suas sobrinhas, há alguns anos.  Ela pode ser lida agora, na íntegra. Serve como documento de uma época e mostra o que pensavam e queriam aqueles que pegaram em armas para lutar contra a ditadura. Que a Comissão da Verdade possa, ao menos, descobrir quem matou Telma Regina e aonde ela está enterrada.

31/01/1971

Querida família,

Espero que vocês tenham entendido o que está ocorrendo. Estamos felizes e na certeza de que isto é realmente o que queríamos. Não poderíamos viver tranqüilos, sossegados na vida do "dia a dia", tendo a consciência de que é preciso fazer alguma coisa para libertar nosso povo da miséria e da exploração. A revolução brasileira está em processo acelerado e não podemos nesta hora nos omitir e deixar de dar nossa contribuição efetiva. Ninguém vai lutar pelo nosso povo a não ser nós mesmos, cabe a nós esta nobre tarefa de ser vanguarda na luta pela libertação de nosso povo e do povo explorado do mundo todo... 

Este mundo corrupto, infeliz, cheio de contradições, de misérias, de vícios que conhecemos, não deixaremos para os outros. Nas mãos de cada um de nós está esta responsabilidade. Qualquer homem comum é capaz de construir um mundo melhor. Para isso é necessário que se tenha disposição para lutar, dedicar-se de corpo e alma a esta tarefa, que é a maior contribuição que um homem pode dar à história, à humanidade...

Agora sabemos que nossa passagem pelo mundo foi importante. É necessário estar-se convicto para poder de sã consciência abdicar da vida privada, particular, para dedicar-se de corpo e alma a uma causa política universal... Estamos muito felizes... Esta foi a vida que de livre e espontânea vontade escolhemos... É movido pelo amor de vocês que lutamos. É pensando nos pais, filhos e irmãos que sofrem e morrem nas prisões. É pensando em milhões de famílias que vivem em condições subumanas, vendo seus filhos morrerem de fome... É para que todos possam ter o carinho e o amor de suas família, e possam ser felizes como nós, que lutamos...

Estamos aqui porque precisam de nós. Este povo miserável, doente e analfabeto precisa de quem os ajude e nós estamos prontos para isso... Vocês devem ficar orgulhosos em saber que o que nos ensinaram e a cultura que vocês nos possibilitaram ter, não está sendo utilizado à toa, que nós não nos corrompemos pelo dinheiro e fomos fiéis ao nosso ideal...

Esta vontade terrível de viver, esta alegria pela vida, este amor pelo homem, pela humanidade, esta esperança de um mundo melhor, aprendemos com vocês, em todas nossas alegrias e tristezas... Não deixaram que nos transformássemos em egoístas, individualistas. Quero que meus sobrinhos se orgulhem de mim... Quero que eles, ao serem adultos, desfrutem daquilo que me esforcei para deixar para eles... Alguém dizia: "Quem não conhece a verdade é apenas um ignorante, mas quem a conhece e a esconde é um criminoso".

Telma Regina Cordeiro

Salgueiro: carnaval e subversão


O Carnaval e o futebol foram as duas entidades que menos sofreram com a repressão na época da Ditadura Militar. A razão é simples: foram as duas válvulas de escape para a contestação e o “não” reprimido que o povo tem direito a manifestar. Na moita, porém, o autoritarismo se fez muito presente através da censura, do jogo de influências e das perseguições não-ostensivas. Neste sentido, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro foi, sem dúvida, a mais prejudicada.

Sobre isso, o carnavalesco Fernando Pamplona nos conta, em artigo escrito em 1986: “Depois de muita discussão democrática e votação em assembléia, demos uma de D. Quixote e o Salgueiro resolveu contar, em 67 (antes do AI-5, é lógico), a história das nossas verdadeiras revoluções, baseado no maravilhoso livro A História da Liberdade no Brasil, de Viriato Corrêa. Resultado: mesa cativa para o pessoal do DOPS; coronel perguntando por que não contávamos a liberdade até os nossos dias – Que é isso, coronel? Paramos em Deodoro porque não somos juízes do nosso tempo”.

O resultado: cortaram a luz na quadra do Salgueiro e a escola só pôde continuar seus ensaios porque uma empresa italiana de cinema – cujo diretor, aliás, era um primo estrangeiro do meu pai – emprestou um gerador. Quadra esvaziada, todo mundo negando dinheiro e uma diretoria covarde que sumiu do mapa. Naquele ano, o Salgueiro desfilou pobre, mas mesmo assim conseguiu ficar em terceiro lugar. A escola estava manjada depois de enredos “subversivos” como Palmares (palavrinha proibida pela censura) e Chica da Silva.

Teve outro episódio cômico, três dias antes do desfile de 1970. O enredo era a Praça XI e todos os carros da escola eram extremamente realistas, feito com material natural e de demolição: havia um boteco com chope de verdade, com mesa de boteco, balcão de mármore e, claro, um mictório em meio a um amontoado de engradados de garrafas e barris. Diante do mictório ficava um manequim de terno branco com uma das mãos pregada na parede e a outra no invisível “assunto”.

Pamplona conta que o censor ordenou: "Mijando não pode! Tira". O carnavalesco espertamente respondeu: "Tá mijando não, tá vomitando. É que a outra mão caiu". Foi chamado um carpinteiro, que pregou a mão do "assunto" também no alto (as duas mãos para cima, apoiando-se na parede sobre o sanitário). O censor ficou satisfeito e disse: "Agora sim. Vomitando pode". O vômito está caindo em cima deles até hoje.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Para falar de Brasil

Um blog que fale do Brasil e dos brasileiros. Mas sem provincianismo, de um Brasil aberto ao mundo e cada vez mais presente no verdadeiro jogo de xadrez que são as relações internacionais. De um Brasil orgulhoso de suas culturas, seus regionalismos, seu jeito de ser e estar. De um Brasil que recupera a sua memória para construir a sua história. Do país jovem e ousado que somos. Sem mascarar seus problemas e sem deixar de reconhecer e denunciar seus descaminhos políticos. De um Brasil sem complexo de vira-lata, que combate a hipocrisia e o arrivismo daqueles que sempre usufruiram de suas riquezas sem dar nada em troca, que vai à luta e que contesta. Do Brasil delicado, mas forte; racional e sensível; lúdico, mágico e original. Do Brasil que é parte da América Latina e se orgulha disso. Do Brasil que está no todo e em cada um. Da música popular e do futebol, da ciência e da fé, da política e da poesia, da metrópole e do sertão, da caatinga e dos pampas. Enfim, um blog para falar do prazer e da dor da gente, que não sai no jornal. Do Brasil que é meu e seu. Do Brasil que há em nós.

E não há ocasião melhor para inaugurar um blog brasileiro do que o aniversário da mui leal e heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que completa hoje 447 anos de existência. O vídeo abaixo, sensacional, diz muito sobre o espírito carioca, que é tão brasileiro. O diretor Jarbas Agnelli conseguiu um efeito inédito ao transformar a cidade numa espécie de maquete - e, no entanto, tudo é real! A trilha sonora, também excelente, empresta às imagens uma aura de sonho. Maravilhoso, como o próprio Rio.